UESPI

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ

Entrevista: “A literatura promove a desconstrução de estigmas e estereótipos sobre grupos étnico-raciais“

A Uespi, em 2019, tinha a maior representação de docentes negros(as) do País segundo o Ministério da Educação. Em 2022, segundo dados do Censo da Educação divulgados neste mês de novembro, a Uespi tem 750 docentes que declaram pretos/pardos, enquanto que brancos são 378 de um universo de 1.161 professores. A UESPI tem representação docente e isso repercute em projetos de pesquisa, extensão e debate em sala. A conscientização passa pela Educação.

E para refletir sobre o dia da Consciência Negra, 20 de novembro, a Ascom conversou com a Docente Algemira Mendes, que é “parda, afro-indígena”, pesquisadora da Uespi e escritora. Esse diálogo traz dados pessoais sobre quem ela é, como se identifica e sua inspiração para seguir na vida e no campo da pesquisa e literatura sobre mulheres negras.

Professora da Uespi e escritora dedicada a história de mulheres negras, em especial Firmina

Ascom: Quem é Algemira Mendes?
Profª.  Algemira:
Mulher Nordestina, parda, afro-indígena, mãe, professora e pesquisadora.

Ascom: Como você se declara quanto à sua cor?
Profª.  Algemira: Parda, afro-indígena. Parda com ancestralidade afro-indígena.

Ascom: Você me disse que essa identificação é uma questão polêmica. Você pode explicar sua resposta?
Profª.  Algemira: É comum ao falarmos de nossas origens, nos colocar sempre como um povo mestiço com influências dos povos indígenas habitantes primeiros, do colonizador branco europeu, os povos da diáspora africana. Quando digo que sou parda do ponto de vista da epiderme, incluo aí minhas origens, marcadamente ligadas à minha ancestralidade dos povos africanos diaspóricos.
Nasci em Ipiranga do Piauí, à época pertencia a Oeiras, a antiga Vila da Mocha, primeira capital do Piauí. Desde criança que tenho consciência que meu avô materno era filho de escravizados, tendo nascido na vigência da Lei do Ventre Livre, em 1871, já minha avó materna era descendente de portugueses já nascidos no Brasil, assim como meu avô paterno. Porém minha avó paterna era descendente dos povos indígenas. Daí minha identificação com a ancestralidade afro-indígena.

Ascom: Você pesquisa e tem produção literária quanto a afrodescendência feminina. O que te levou a procurar essa área? Teve uma fonte inspiradora?
Profª.  Algemira: Sim, conheci mulheres afro-brasileiras fortes na minha infância, ouvi histórias de minha mãe e minhas tias sobre uma localidade chamada Jardins, próximo a São João da Varjota, onde existem muitos povos quilombolas, que também pertencia a Oeiras. Quando tive conhecimento sobre a escritora Maria Firmina do Reis, uma mulher negra, nascida no Nordeste, no Maranhão, no século XIX, descendente de escravizados, que teve uma educação diferenciada das mulheres do seu tempo, era poeta, jornalista, musicista, romancista e professora, despertou-me o interesse, logo, fez parte do corpus de minha tese de doutorado defendida pela PUCRS-2006.

Ascom: Você pesquisa sobre a mulher negra. Precisamos sempre estar atentos à questão do espaço, do contexto, do tempo. Tem alguma coisa em comum ou é completamente diferente entre a mulher negra do passado e a mulher de hoje?
Profª.  Algemira: Sim, porque, durante séculos, as mulheres tiveram suas vozes silenciadas em vários espaços. Para as mulheres negras, esses espaços foram e continuam sendo mais cruéis, pois foram invisibilizadas e representadas por muito tempo nas artes de modo estereotipadas, com corpos criados para o trabalho ou para a atividade sexual. E, aliado a esse sistema, tem-se a ausência significativa de cientistas, educadoras e, principalmente, de escritoras negras e o ocultamento de suas obras, provocando a invisibilidade também da sua escritura, o que representa, pode-se dizer, no dizer da teórica afro-brasileira Sueli Carneiro, um “epistemicídio”, impedindo a mulher negra de elevar-se à condição de sujeito de conhecimento nos termos validados pelo Ocidente. Mas elas lutaram e vêm lutando ao longo dos séculos, principalmente através da literatura, contra o silenciamento da sua produção cultural/literária e pelo fimdo cerceamento. Para tal, muitas vêm se tornando escritoras, produtoras de uma literatura própria, pautada em sonhos de emancipação, liberdade, autonomia e pleno direito a uma alteridade positiva. Muitas escritoras negras vêm construindo suas histórias com resistências, como no caso da nossa pioneira Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula (1859), além de Carolina de Jesus com Quarto de Despejo (1960), Ana Maria Gonçalves com Um defeito de Cor (2006) e Conceição Evaristo com Ponciá Vicencio(2003), e muitas outras que estão surgindo na contemporaneidade.

Ascom: Como a literatura contribui para uma consciência negra e contra o racismo?
Profª.  Algemira: A literatura, para além de despertar a reflexão sobre “o eu, o outro e o nós” (BRASIL, 2017), se usada na perspectiva da educação multicultural e antirracista, promove a desconstrução de estigmas e estereótipos sobre grupos étnico-raciais historicamente discriminados e marginalizados na sociedade brasileira. Dessa forma, o racismo estrutural e sistêmico não estaria metamorfoseado na sociedade como está hoje, sociedade esta que se intitula plural, democrática e multiétnica.

Ascom: Como parda mestiça e docente (afro-indígena), como isso pode contribuir para a consciência negra?
Profª.  Algemira: Minha vida pessoal e acadêmica tem sido pautada pelo respeito ao outro. Sou mulher, Nordestina, professora, mãe. Como pesquisadora, tenho me dedicado a pesquisas voltadas para questões de etnias e gênero e as minhas ancestralidades.

Ascom: É possível citar dois motivos para termos o Dia da Consciência Negra?
Profª.  Algemira: Um oficial, em alusão à data da morte de Zumbi. Oficialmente, o dia foi instituído através da Lei nº 10.639, em 2003. O documento inclui o tema “História e Cultura Afro-Brasileira” como componente curricular obrigatório no calendário escolar. Já, em 2011, por meio da Lei nº 12.519, a data foi oficializada como “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”.
E outro motivo importante é que está na gênese dos povos diaspóricos africanos, a resistência.

Ascom: Você vai lançar o livro “A escrita de Maria Firmina dos Reis: na literatura afrodescendente brasileira: revisitando o cânone”. O que você pode nos falar sobre ele?
Profª.  Algemira: Resultado de minha tese sobre a primeira escrita afro-brasileira e Afro-Latina, Maria Firmina dos Reis é uma dessas escritoras e intelectuais que passaram a incorporar o cânone de nossa literatura. Sua obra de estreia, Úrsula, data de 1859, esteve fora de circulação por muito tempo; recuperada nos anos 1970, foi objeto de produção fac-similar na década seguinte. Nos anos 1990, voltou a ser difundida, agora em edição comercial, só, então, se integrando aos estudos literários, onde goza de merecido prestígio. Será a escritora homenageada na 20ª Festa Literária Internacional de Paraty — de 23 a 27 de novembro de 2022.

Ascom: E o tempo e contexto do lançamento são favoráveis?

Profª.  Algemira: Sim, porque, nos últimos anos, os estudos decoloniais e o feminismo negro têm colaborado para desconstruir o pensamento eurocêntrico de uma história única das mulheres.

Com o empoderamento das mulheres negras e o protagonismo sobre a escrita de mulheres negras, Maria Firmina dos Reis, por ter sido pioneira, continua sendo atual para discutir as questões de relações de poder,étnicas, raciais e gênero na literatura de autoria feminina.

Ascom: A UESPI, em 2019, tinha a maior representatividade de docentes segundo o MEC. Hoje, a UESPI tem os seguintes dados do resultado do censo da educação superior de 2021 divulgado em 04/11/2022: Uespi: 1.161 (sendo 947 efetivos): Preta: 101. Parda: 649.  Branca: 378. Somos uma universidade que se orgulha em se mostrar e reafirmar a negritude. Para você o que isso representa?
Profª.  Algemira: Considero um grande avanço para comunidade acadêmica tanto discente como docente, pois a Universidade Estadual do Piauí (UESPI) sempre esteve atuante na causa através do incentivo de pesquisas, atividades e produções na área da representatividade negra. Os pesquisadores trazem para o ambiente acadêmico discussões importantes e necessárias para o desenvolvimento sociopolítico e cultural da sociedade. Discute através dos vários grupos de pesquisas voltados para o tema, assim como a promoção de eventos para tal.

Ascom: Qual a sua mensagem para todos e todas, para o combate ao preconceito racial e valorização da cultura negra?

Profª.  Algemira:Minha mensagem para o combate ao preconceito racial que o antirracismo seja uma prática diária na vida de todos e todas, pois como afirma a filósofa Angela Davis, ele se apresenta de formas mutáveis na sociedade contemporânea.

Para combater preconceito racial e valorização da cultura negra
é preciso romper com o discurso que vem desde o processo de colonização/escravidão, em que coloca a mulher negra como um objeto sexual, como um corpo destinado ao trabalho. Vê-se que a mulher negra não é diferente da mulher branca, o que falta, na verdade, são as oportunidades poucas .Quando as tem a ,não é rasurada ,mulher negra tem um protagonismo tanto no empreendedorismo como nas artes, na cultura, na academia, na ciência ,na literatura etc.